DONA JOANA - O RETORNO

Fomos recebidas por Daniela, neta de D. Joana. Na casa estavam também Tatiana, a cuidadora, e Tainá, de 7 anos, filha de Daniela. Dona Joana mora em um quartinho na parte de cima do terreno que tem várias casas onde moram dois de seus filhos. Ao entrar no quarto, Solenta teve a sensação de que o sol, que havia aparecido depois de um longo período de chuva e frio, ainda não havia conseguido entrar lá. Janela e cortinas estavam fechadas e D. Joana reclamava de um frio que estava muito mais ameno que nos dias anteriores. Ela estava deitada na cama e ficou feliz com a nossa chegada. Não está sendo fácil fazer o registro desse encontro, não só por que ele é a última visita dessa primeira etapa de retornos e a vontade é de escrever tudo o que ainda não consegui colocar em palavras, mas também porque D. Joana é a prova viva de que gentileza gera gentileza, e conseguir relatar o caminho que traçamos com todas as suas sutilezas é obra homérica. Fiquemos pois no resumo. Quando Terezinha começou a tirar as fotos, D. Joana já comecou a reclamar que ela estava feia, sem os dentes, mal arrumada, despenteada... Solenta tirou seu chapéu e disse: "que nada, a senhora está linda! Mas, se a senhora quiser, eu empresto meu chapéu para não aparecer o cabelo..." Solenta colocou o chapéu em D. Joana, mas mesmo assim ela não ficou contente. Tainá ficou excitadíssima querendo experimentar o chapéu e tirar foto. Terezinha foi com ela para o lado de fora do quartinho para tirar a foto com uma luz natural. Solenta aproveitou a deixa e disse: "o que a senhora quer fazer para se sentir melhor para as fotos? Sentar? Colocar a prótese? Pentear o cabelo?" Então se iniciou o processo de transformação. Primeiro ela se sentou na cadeira, depois colocou a prótese dentária, penteou os cabelos, colocou a "roupa bonita", até sapato. Sempre com o incentivo de Solenta: "que mais? Que mais a senhora quer fazer para se sentir bem?" E por mais que o que ela realmente quisesse fosse, segundo ela, voltar no tempo para sair bonita na foto, como quando ela era jovem, algo impossível, era visível como ela já se iluminara e até estava parecendo outra pessoa. Podia rir e gargalhar a vontade com seus dentes à mostra. E assim fizeram várias fotos, em várias composições dela com a neta, com a bisneta, com a cuidadora, com Solenta, com Terezinha. Dona Joana disse na primeira visita e tornou a repetir nessa que tirou todos os retratos da parede. Retratos dela, do marido e da família, pois eles a entristeciam por fazê-la recordar de um tempo que não volta mais. Solenta entregou o embrulho com o porta-retratros e ela ficou tão surpresa em ganhar um presente que nem conseguiu abrir. Só agradecia. Ela estava um pouco preocupada com seu filho mais velho que havia três semanas não dava notícias e ela, sem telefone, não tem como procurá-lo. Quando a fala dela descambou para idéias negativas Solenta disse: "agora está na hora do segundo presente que eu trouxe", e ajudou-a a desembrulhar o travesseiro dos bons pensamentos. "Toda vez que a senhora estiver pensando alguma coisa ruim, a senhora encosta a cabeça no travesseiro e pensa tudo ao contrário." E Solenta falou toda orgulhosa que ela mesma havia feito o travesseiro. "Cortei e costurei tudo sozinha." Dona Joana se emocionou e disse que nunca ninguém havia feito algo assim para ela e que também nunca havia conhecido alguém como Solenta. "E olha que eu já vivi muito nessa minha vida." E continuou: "tem 10 anos que estou aqui nesse quartinho, passou muita gente por aqui, mas nesse tempo todo eu nunca dei uma risada como essas que eu estou dando hoje." Dona Joana não consegue suportar a presença viva de sua bisneta que, como qualquer criança saudável, indaga, fuça e não pára quieta. O tempo todo ficou falando para ela ficar quieta e Solenta tentava incluir Tainá na brincadeira, levando ao extremo a vontade de D. Joana, falando para ela virar estátua. No auge de sua declaração de gratidão à Solenta ela disse para a bisneta: "ô menina, ela é bonita, não é?" Para Solenta, mais importante que o elogio foi ela ter incluido a bisneta na conversa. Depois ela disse que, da outra vez que Solenta havia ido visitá-la, ela tinha contado para seu filho que havia estado lá uma médica (toda hora ela tem que ser lembrada que Terezinha é enfermeira mas ela insiste em chamá-la de doutora, médica...) e junto dela uma outra, assim diferente... "Como é que posso chamá-la?" E Solenta disse: "palhaça, uma palhaça!" E ela disse: "não, isso não, eu não posso chamar você disso. Eu sou de uma época que isso é coisa ruim, é xingamento." Ela conseguiu falar isso sem dizer uma única vez a palavra palhaça. E Solenta disse: "mas eu sou palhaça mesmo." E ela gargalhava... Quando Solenta anunciou que a hora da despedida se aproximava, D. Joana começou a falar de coisas ruins, como é triste sua vida naquele quarto, como é difícil ficar sem notícias do filho... E Solenta pegou o travesseiro e encostou na cabeça dela e falou: "bons pensamentos, bons pensamentos." E mais uma vez ela gargalhou gostoso.
Não foi fácil despedir, pois D. Joana não queria deixá-las ir embora. Solenta abraçou-a e beijou-a umas cinco vezes. Mas a hora já estava mais do que esgotada e assim tiveram que partir. Solenta foi embora com a esperança de que D. Joana voltasse a colocar retratos na parede, de que ela aceitasse que a vida tem seu curso e que "cada época tem seu tempo".

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