QUARTO DIA - Seu Geraldo



 Seu Geraldo tem 91 anos, uma grande lista de males, uma perna amputada e sua mente por vezes o coloca em um passado distante. É acompanhado por uma cuidadora durante todos os dias úteis e pela esposa Zilá, ambas de uma dedicação e carinho que transbordam por todos os lados.



O ENCONTRO
 Terezinha tocou a campainha e voltou ao carro para buscar algo que havia ficado para trás. Solenta colocou a cara no portão e uma pessoa apontou no alto da escada, abriu um sorriso e disse: "Vou buscar a chave". Era Nazaré, a cuidadora que tinha, na cabeça, uma tiara que trazia uma fileira de corações vazados. Nesse momento, Solenta ainda não previa que esses corações e a linda rosa na floreira já eram sinais do que seria um encontro inesquecível. 
Ao entrarem no quarto onde seu Geraldo se encontrava sentado na cama, Solenta sentiu como se o quarto exala-se um perfume de roupa lavada com amaciante e colocada para secar ao sol. Um cheiro de bom trato. Um quarto pequeno mas que para Solenta parecia um mundo imenso. A empatia foi instantânea. Seu Geraldo segurou a mão de Solenta e não largava mais. E passaram a brincar com as palavras, enchendo de elogios as "meninas cuidadoras": "elas são espetaculares", ele diz. E Solenta: "espetacularíssimas". E ele: "espetacularissíssimas", e assim por diante. Após Terezinha terminar seus procedimentos, que foram simples e rápidos, Solenta já foi querendo saber se Seu Geraldo poderia ser seu professor de espanhol (já havia descoberto sua ascendência por um leve sotaque que ele tem) e de conversa em conversa perguntou se ele poderia lhe ensinar uma canção. "Nacional daqui ou espanhola?" perguntou ele. "A que o senhor lembrar", ela disse. Então, ele começou a cantar:
María dame la capa
Que me voy a torear.
Que me han dicho los toreros
Que el toro me va a matar.

Solenta, encantada, pedia para ele repetir e tentava aprender. Gritava para Terezinha que estava do lado de fora da sala para ela anotar a letra. A partir daí, seu Geraldo não falou mais português. Todo o restante do encontro foi em espanhol (por parte dele, por parte da Solenta foi em portunhol). Solenta encarnou dançarina de flamenco, tentou aprender o bater de palmas característico desse ritmo, imaginou castanholas nas mãos... Ouviu histórias de quando ele "niño, mirava su madre bailar". Por ela, não saía mais de lá, mas a hora de partir sempre chega e na despedida o momento mais lindo e precioso desse encontro. Quando Terezinha perguntou para seu Geraldo se ele queria outra visita da Solenta, ele respondeu: "vuelva cuando quieras" . E Solenta começou a cantar: "El día que me quieras...." Nesse momento, Seu Geraldo soltou uma voz maravilhosamente linda, alta e profunda:
"a rosa que engalana se vestirá de fiesta con su mejor
color
y al viento las campanas
dirán que ya eres mío
y locas las fontanas
se contarán su amor".

Nessa última estrofe, sua voz até falhou, como se lhe faltasse ar. 
Solenta ajoelhou, beijou sua mão, agradeceu, agradeceu, agradeceu... "Gracias, gracias, gracias!"
Na janela, pelo lado de fora ela ainda teve tempo de soltar:
"La noche que me quieras..." 
E no corredor,
A rosa que engalana...
     Para quem quiser ouvir a música na voz de Carlos Gardel:
http://www.youtube.com/watch?v=RmXCVOmOCPU

Comentários

  1. belíssino encontro, como a vida é capaz de desdobramentos tão delicados !!
    linda a rosa com o belo azul no fundo!!!

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