TERCEIRO DIA - D. Magdalena



Chegamos na frente da casa e Solenta  ficou deslumbrada com o roseiral repleto de rosas vermelhas. Pegou a máquina fotográfica e registrou aquela beleza. Tomou gosto e registrou outras tantas coisas.
Dona Magdalena tem 90 anos e parece uma menininha. Quem cuida dela é seu filho Deílson. Ela teve um tombo que a impossibilitou de caminhar, anda com auxilio de um andador pelo interior da casa e até a frente, mas não sai.

O ENCONTRO

A casa tem um cheiro bem forte característico das coisas antigas. Esse foi o tom do encontro. Uma entrada em um túnel do tempo. Todos os sentidos despertos, tanto que é possível lembrar até os momentos em que Solenta esteve ausente, coisas que ela deixou passar. 
Deílson gosta de mostrar as coisas que a mãe faz, como um tricô todo colorido feito de um novelo de restos de lã emendadas, pura poesia. Um pulóver inacabado em consequência de um problema na vista... Quando Dona Magdalena e Terezinha se recolheram para o quarto para procedimentos de enfermagem, Solenta avistou um lindo porta-retrato com a Dona Magdalena. "Quantos anos ela tinha?" "Acho que uns 18, 20 anos", respondeu Deílson. "Posso Fotografar?"
"Claro. Aqui tem mais luz." Deílson pegou o porta-retrato e levou para abaixo da janela.





"É a italianinha", repetiu várias vezes, com muito gosto.






                        











 Dona Magdalena tem lindos olhos e um olhar triste e profundo




Dona Magdalena admira a renda da saia de Solenta

E o encontro seguiu com muitas, muitas histórias. O marido Miguel que gostava da irmã até que se conheceram num baile de carnaval... 
Quando veio a caixa/lata de fotos, Solenta não acreditou... Quanta preciosidade! 
"Nossa! Seu Miguel parece um artista de cinema!", disse Solenta, toda empolgada. "Cinema italiano!" E ela disse: "Parece que você advinhou, ele fez ponta em um filme!" E o filho acrescentou: "Ele cantou no Coral da antiga TV Tupi". E dá-lhe procurar a revista com a foto do coral. 

 No meio dessa aventura de imagens e lembranças, chegaram à casa João e Josefa, autorizados pela Igreja Católica a levarem a comunhão para Dona Magdalena. Já tínhamos sido informadas de que ela recebia a comunhão em casa,  era católica e o filho pertencia a uma outra religião, mas não esperávamos que eles chegariam enquanto estávamos lá. 
 O momento seguinte foi de uma preciosidade rara. Dona Magdalena perguntou para Solenta qual era sua religião. Por um milésimo de segundo Solenta titubeou entre uma "mentira piedosa" (como descreveu a vó Nair), dizendo que era católica, e a verdade verdadeira, ou seja, que não segue nenhuma religião. Sabia que uma não identificação religiosa, àquela altura, poderia soar como uma traição. Então, soltou bravamente: "Eu sou de todas as religiões." Por alguns segundos houve um desconforto geral, uma respiração suspensa... e Solenta continuou: "Porque Deus está em tudo e o que importa é a gente querer o bem e praticar o bem". Todos respiraram aliviados, concordaram, e assim provavelmente puderam assimilar as diferenças.
Na sequência, João fez as leituras, Solenta tentou seguir todos os passos, sinais e orações (pai nosso e ave-maria). Ao final, depois de oferecer a hóstia,  Josefa perguntou se Dona Magdalena precisava de água e ela respondeu: "Não, obrigada, já comi." Deu um sorrisinho maroto e corrigiu: "Já comunguei".
Depois que eles foram embora, seguimos com mais fotos e histórias. As terras onde hoje fica o Instituto Butantã eram de seu avô, seu pai era dono de olaria, perderam tudo depois da guerra, o colégio em que estudava... e por aí foi... 

Caderno de Linguagem de Dona Magdalena, 21 de julho de 1930

De preciosidade em preciosidade. Deílson falou: "A história dela daria um filme..." Sim, um belo filme. A hora de ir embora se aproximando, "Não dá tempo para um café?", ela pergunta. Infelizmente não, o tempo externo dá suas bordoadas e assim somos convocadas a sair do túnel. Ela oferece  uma muda da roseira, pede para o filho tirar. Indo embora, Solenta aparece na janela e canta para ela: "Madalena, Madalena... Você é meu bem querer. Eu vou contar pra todo mundo, vou cantar pra todo mundo, que eu gosto mesmo é docê." E assim Solenta foi embora, toda feliz com sua muda de rosa vermelha. "Cuidado com o espinho!" 

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