OITAVO DIA - Dona Reiko



Chegamos à frente da casa, situada em uma rua bem tranquila. Dois sobrados geminados que se comunicam no andar de cima por uma abertura bem em frente a escada que subimos, uma sensação de espelho. Quem nos abriu o portão foi Francinete, que cuida da casa e nos levou até onde estava Dona Reiko e a filha Natalina, que é quem cuida dela. Dona Reiko acaba de fazer 84 anos e tem um diagnótico de demência. Apesar de falar bem o português, nos últimos tempos, só tem se comunicado em japonês.
O ENCONTRO
Ao chegarmos no andar de cima não encontramos de cara Dona Reiko, ela estava com Natalina no terraço que dá de frente para casa. Estava sentada em uma cadeira de rodas e foi impossível decifrar o que sentiu em relação à figura de Solenta. Tinha um expressão de surpresa mas era completamente enigmática. Surpresa boa? Surpresa ruim? Surpresa indiferente? Até agora não é possível responder. Solenta de cara se admirou com a figura, que parecia ter saído de um filme, com um "figurino" impecável. Mas, nesse momento Solenta ainda não sabia que filme era, só bem depois é que a ficha cairia. A enfermeira Bete pediu para que ela fosse levada para dentro da casa para suas avaliações. Solenta elogiou a linda gatinha preta que estava deitada no terraço e Natalina, se dirigindo até ela, falou: "ela é aleijada, arrancaram as unhas dela." Pegou a gatinha, de nome Belina, e deu nas mãos de Solenta, que abraçou-a e acariciou-a, enquanto Natalina e Bete levavam Dona Reiko para dentro da casa. Uma gatinha mansa, mas que não se sentiu totalmente à vontade no colo e pediu para descer depois de receber algum carinho. Solenta estava enternecida e chocada, não é preciso entender muito de gatos para saber que suas garras são sua proteção, sua arma contra ataques externos. Por isso dedicam tanto tempo a limpá-las e afiá-las em superfícies que escolhem para esse fim. O problema é que, às vezes, o local escolhido é o sofá ou outro móvel da casa, o que enfurece a maioria das pessoas.
Dentro do quarto, depois de lavarem as mãos cada uma em um banheiro, a enfermeira Bete fez suas avaliações e medições. Terminada essa parte, Bete e Natalina foram conversar no quarto ao lado e Solenta e Dona Reiko ficaram sozinhas. Solenta sentia como se muitos pontos de interrogação flutuassem no quarto. Dona Reiko, até então, não abrira a boca nem esboçava nenhuma espécie de sorriso. Foram construindo um encontro cheio de silêncio e pausas. Solenta foi tentando, bem devagar, mostrar seu desajeito, suas bobagens, seus instrumentos. A cada instrumento apresentado, ela começava olhando e logo abaixava a cabeça e se entregava a um olhar distante que parecia entristecido. Quando Solenta encostou a caixinha de música na porta do guarda-roupas para amplificar o som que ecoava, ela esboçou o primeiro sorriso com o canto esquerdo da boca, tão sutil e tão efêmero mas que, para Solenta, foi como se o quarto todo se iluminasse. Bete e Natalina voltaram para junto delas. A partir daí, Dona Reiko só dirigia o olhar para as duas. Natalina repetia a toda hora que ela não estava num bom dia, que não estava com o humor muito bom. Para Solenta, era como se ela não falasse, pois ela não havia aberto a boca até então. Mas depois de muito estimulada por Natalina, em japonês, ela soltou uma frase que, traduzida pela filha, queria dizer: "o homem incomoda muito à noite." Dona Natalina explicou que o pai dela, esposo de Dona Reiko, toda noite chorava pedindo desculpas por não ter dado a ela uma vida melhor. Contou que moravam no "sertão" e que Dona Reiko trabalhava na lavoura de tomates aplicando agrotóxicos. Às vezes adoecia (tinha hemorragias) e precisava ser levada para a cidade para tratamento. Ela e os irmãos ficavam sozinhos "no escuro, no meio do nada." Depois dessa história, ainda tentamos algumas brincadeiras com Dona Reiko, mas parecia que ela queria mesmo era estar sozinha. Disse mais uma duas frases e dessa vez com a boca um pouco mais aberta e com a voz um pouco mais forte. O grande prêmio do dia foi ela dar um beijo em Bete, coisa que a filha disse que ela não faz nunca. Solenta muito timidamente pediu um também. E não é que ganhou um, bem estalado e gostoso! Pena que já era hora de ir embora... Uma sensação de que partíamos momentos antes da rosa desabrochar. 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES BEM PESSOAIS
Os agrotóxicos foram desenvolvidos para serem usados como armas químicas na primeira e segunda guerra mundial. Depois, viraram os nossos defensivos agrícolas. Eu os vejo como minúsculas e imperceptíveis bombas atômicas, carregando em si um poder de destruição invisível aos olhos.... Talvez por isso, já no caminho para casa, é que me veio fortemente a imagem do filme "Rapsódia em Agosto" de Akira Kurosawa, no qual uma avó pequena e frágil, que viveu de perto o horror da bomba atômica, corre persistentemente  contra o vento e a tempestade. 
Para quem quiser assistir a cena do filme

Comentários

  1. Minha querida,

    Outro dia, fotógrafos amigos de uma lista começaram a discutir talento. Se existia, se adquiríamos, etc....
    E eu chego a conclusão, ao acompanhar este seu trabalho, de que independente de vc ser talentosa no que faz (a gente sabe que vc é), o mais importante é que vc carrega um DOM. Um DOM, divino, maravilhoso e admiravél...!
    Sou sua fã...

    Um grande beijo,
    saudades,
    irmandhinha Taty

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