S. SATURNINO - O RETORNO

Quando chegamos em frente à casa, Solenta teimou com o motorista que eles estavam em frente à casa errada. Que nada, a família se mudou. 
Novamente fomos recepcionadas por Cris, a sobrinha cuidadora. E, segundo ela, a casa nova é  bem melhor, sem o carpete que fazia mal para S. Saturnino. 
Chegamos ao quarto do fundo, no andar de cima, onde se encontrava S. Saturnino, a esposa Benê, que dessa vez estava sentada na cama ao lado, e Laís, esposa de um dos netos deles. A televisão estava ligada e ficou assim por um longo tempo, pois Laís estava bem interessada no que estava passando, até que Terezinha pediu para desligá-la. S. Saturnino não parecia nem um pouco interessado na TV e ficou bem contente com a visita. O espaço ao lado da cama  era apertado e havia a fileira dos balões de ar, o que dificultou um pouco a aproximação de Solenta, que também  não se sentiu a vontade para se atirar na cama pois a barra de sua saia estava muito molhada e já bem suja apesar de ser a primeira visita do dia. Solenta começou entregando o porta-retratos pintado por ela, trazendo a foto dos dois juntos. S. Saturnino estava num dia bem inspirado e construía frases que mais pareciam saídas de um livro de Machado de Assis pois tinham um sabor de escrita antiga, sagaz e bem humorada. Foi uma pena não estar com um gravador em mãos... A primeira dessas frases foi ao abrir o presente. Disse algo como: "passemos, então, a abertura do pacote para que se dê fim ao mistério." E como Terezinha estava tirando foto nesse momento, ele completou dizendo: "e que se registre para as gerações futuras esse momento que aqui se deu." Solenta estava embasbacada com esses dizeres e emendou: "e o que o senhor vai abrir contem o registro de um outro momento, anterior a esse momento que é também registrado..." Por mais que Solenta se esforce, seus dizeres nunca serão tão belos quanto os de S. Saturnino. O porta-retrato circulou de mão em mão e, ao chegar às mãos de D. Benê, Solenta pegou uma outra foto, que havia levado para presenteá-los, na qual ela também aparecia. "Para senhora não ficar com ciúmes."  Parece que ela ficou bem satisfeita de não ter ficado de fora das lembranças. Depois Solenta disse que a grande surpresa ainda estava por vir e perguntou se podia usar uma tomada. Alguém disse para ele fechar o olho para esperar a surpresa e Solenta estava um pouco atrapalhada para montar a novidade. E ele ficou lá, de olho fechado, dizendo que ela podia montar com calma que ele não tinha pressa. E foi com essa paz e tranquilidade que ele recebeu os primeiros acordes de seu amado Dorival Caymmi cantando a Suite Dos Pescadores. Uma pequena vitrola portátil com um disco de vinil igual ao que Solenta tinha na infância, provavelmente igual a um dos muitos que S. Saturnino ouviu durante a vida toda. E foram muitas músicas tocadas, pois eram dois discos e Solenta ia escolhendo as músicas, conforme os títulos lhe pareciam familiares. O ponto alto no quesito gargalhadas foi quando ela colocou a canção O Samba Da Minha Terra, interpretada pelos Novos Baianos.  No momento em que apareciam solos de guitarra, Solenta fazia de conta que era ela quem estava tocando, claro que de um jeito bem exagerado. D. Benê gargalhou gostoso e Solenta ficava bem satisfeita e quanto mais satisfeita ficava, mais  exagerava. Em algumas músicas, S. Saturnino fechava s olhos como que para ser transportado através da voz de Caymmi para um outro tempo, tempo em que ele não se cansava de cantar essas canções. Às vezes alguém falava: "olha, ele dormiu", e ele abria os olhos e pedia silêncio. Solenta sabia que ele não estava dormindo, que ele estava completamente inteiro e desperto para esse encontro, acordando memórias que ela sequer suspeitava quais eram, mas sabia que estavam vivas e pungentes.  Solenta nem suspeitava que ela também sabia cantar a maioria das músicas e aquelas que ela não conhecia eram também as de que ele não se lembrava. Mas ele se recordava de quase todas e sabia muito bem as letras. Os outros dois pontos altos foram no quesito interpretação. No primeiro, era como se Solenta estivesse vendo o próprio Dorival Caymmi cantando O Mar.  No segundo, quando a vitrola tocou Marina, além de interpretá-la como quem está sentindo cada palavra da letra, S. Saturnino reconheceu a voz de Dick Farney e chegou até a assobiar num trecho. Solenta disse: "que música linda!" E ele: "todas as músicas de Dorival são lindas." Por fim, disse que gostava muito dos cantores desse tempo, não só de Dorival como também de Francisco Alves, João Dias... E Solenta perguntou: "João Dias? Pensei que esse era apenas um nome de rua em Santo Amaro, não sabia que ele era cantor." E Benê mais uma vez gargalhou com essa ignorância de Solenta. Para terminar a sessão vinil, Solenta pegou um disco de Paulinho da Viola e perguntou se S. Saturnino também gostava dele. Como ele disse que sim, ela pediu para que escolhesse entre as músicas Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida e Argumento. E ele disse: "acho que essa primeira é melhor." Solenta e S. Saturnino cantaram juntos, dando ênfase à frase "meu coração tem mania de amor."  E  com a estrofe : "foi um rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar...", Solenta terminou a sessão de músicas. Já era hora de despedir, mas ficamos ainda um tempo pois, ao agradecer a visita, S. Saturnino voltou a desfilar frases bem compostas, agradeceu por fazê-lo "extravasar a alegria que invade o coração,  empurrar a tristeza de um lado e chamar a alegria do outro, fazendo com que a mesma impere sobre o momento..." E depois ele disse que Solenta e Terezinha são mulheres refinadas e inteligentes, que sabem  tratar as pessoas e que isso para ele tem mais valor que um caminhão de dinheiro. Ele e Benê falaram um pouco mais sobre os trabalhos que ele fez e o quanto ele era respeitado e amado. Solenta não tem a menor dúvida disso. Ele é realmente encantador. Eles seguiram com mais algumas histórias.
D. Benê se lamentou por não ter estudado, seu pai era "um homem muito rude", segundo ela, e "de mentalidade arcaica", segundo S. Saturnino, dos que diziam que "estudo não é coisa pra mulher, mulher foi feita pra encostar a barriga no forno."  Solenta estava com a barriga encostada na borda da cama e segurava, com sua mão, a mão de S. Saturnino. Beijou-a e os dois se abençoaram. Terezinha ajudou Solenta a recolher suas coisas e quis carregar sozinha a sacola, mesmo com a indignação de Benê por Solenta não ajudá-la. Despedimos de todos e fomos embora. Dentro do carro,  com a leveza da sensação de uma visita deliciosa é que Solenta pensou:
Foi incrível como a voz de S. Saturnino, que estava tão fraca e quase inaudível no início do encontro, foi se encorpando e ficando cada vez mais forte. 


Para ouvir Caymmi cantado O Mar

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