S. FERNANDO - A ALTA

Foi bem difícil começar a escrever esse relato. Dois motivos bem óbvios saltam: primeiro por se tratar de mais uma alta e ter que aceitar que não existe, por enquanto, mais perspectiva de encontrar S Fernando; segundo porque, como os encontros anteriores, esse também foi tão belo e profundo e S. Fernando disse tantas maravilhas que não me sinto capaz de reproduzi-las aqui nesse espaço. Mas vou tentar, mesmo que ao final me sinta frustrada com o resultado.
É apenas a terceira vez que Solenta e S. Fernando se encontram, mas a sensação é de que se conhecem de longa data. Solenta, que sempre tem a impressão de que nem sabe em que parte de São Paulo, quiçá do mundo, se encontra, até pode dar dicas ao motorista de qual era o prédio certo, era a primeira vez que ele e a enfermeira Terezinha iam até lá. Fátima, a cuidadora, foi nos esperar lá embaixo para se certificar que o portão estava aberto. Quando subimos até o terceiro andar, a porta do vizinho estava aberta e Solenta avistou quatro ou cinco pares de olhos lindamente curiosos. Claro que, se Solenta fosse seguir seu primeiro impulso alucinado, já convidaria todos a passarem para o apartamento de S. Fernando e fazer a maior festa, mas ainda bem que soube se segurar. Maria, a esposa de S. Fernando, nos recebeu logo à porta do apartamento, tinha lágrimas nos olhos, abraçou Solenta e disse que ele ainda não sabia da visita, seria uma surpresa. Dessa vez ele estava deitado no quarto. Solenta foi correndo para lá, deixando maleta e sacola pelo caminho e dizendo: "o senhor não advinha quem está chegando... tcharamm!!" Quando S. Fernando viu Solenta, abriu os braços e disse: "minha querida, minha querida, que saudades eu senti de ti" e completou: "e agora essa saudade se transformou num canteiro de flores em meu coração." Os dois ficaram felizes e emocionados de se reencontrarem. Solenta apresentou Terezinha e conheceu Cléber, o filho do porteiro que estava por lá. Depois das primeiras saudações, Solenta entregou a caixa com o presente para S. Fernando. Ele disse que abriria depois, mas Solenta não deixou, queria presenciar ele abrindo a caixa, que estava fechada com um nariz de palhaço, para ver sua reação. Ela o ajudou a abrir e ficou emocionada com a emoção que ele deixou transparecer quando pegou a caneca na mão. Na caneca estava estampada uma foto em que apareciam, além dos dois, D. Maria e Fátima e também um trechinho da letra da Dança do tiro-liro-liro. Seu Fernando chorou e como é lindo testemunhar esse choro que brota quando estamos perplexos diante de uma situação que nos arrebata, choro que abre comportas, deixando o rio fluir em seu curso natural, sem represamentos. Depois de um longo silêncio, ele sentenciou: "enquanto Deus me der vida, essa caneca será minha, depois vai para o meu neto." S. Fernando fez como da vez anterior, quando disse que enviaria o porta-retrato para sua irmã em Portugal. Desprendimento é uma das palavras que define S. Fernando. Ele gosta de fazer circular coisas que admira. Solenta levou também uma foto para a cuidadora Fátima e disse para S. Fernando que ela era uma pessoa muito especial. S. Fernando concordou e isso abriu a porta para ele falar de algumas pessoas que ele disse serem muito boas para ele. Começou agradecendo Fátima e também ao marido dela, Cícero, que segundo ele pode compreender que a esposa está a cuidar de outro homem. Depois falou do porteiro Cláudio, pai de Cléber, que socorreu ele, a esposa e o filho Daniel em variadas situações. Solenta brincou que só de olhar para a cara de Cléber sabia que ele tinha um bom pai, um pai bom. Nessa hora, Daniel, que não estava no começo da visita, já havia chegado e S. Fernando disse para ele falar da caneta que havia ganhado quando fosse conversar com os primos de Portugal. Solenta aproveitou a deixa de Portugal para colocar as músicas que havia levado para ele. Armou a vitrolinha e colocou primeiro um disco de Roberto Leal com a música Que Bela a Vida, que fala de imigrantes portugueses e tem um refrão que diz:
Que bela vida quando sabe que se ama!
Estar distante e manter acesa a chama
Tanta saudade, ser feliz é uma quimera!
Mas leva a vida a dizer que a vida é bela!
Uma característica muito forte que Solenta percebe em S. Fernando é a capacidade de conseguir ser feliz em sua condição. Ele não se lamenta, não se revolta, não se queixa. Aceita e vive "a dizer que a vida é bela." Quando Solenta foi colocar a segunda música, a vitrolinha quebrou, mas isso não teve nenhuma importância, pois o melhor dos encontros com S. Fernando é ouví-lo. Quando Daniel viu a capa do disco do Roberto Leal falou: "ele tava bem novinho nessa época. Meu pai já te falou que jogava cartas com ele?" E aí dá-lhe histórias de um tempo em que S. Fernando trabalhava no andar de cima de onde Roberto Leal ensaiava. Num determinado momento, S. Fernando disse: "eu sou bonito da pele pra dentro" e depois falou um pouco o que queria dizer isso: mesmo diante das adversidades, manter o coração alegre e transmitir isso para os outros. A hora estava avançada, Daniel ainda ajudou S. Fernando a se levantar e fomos para a sala tomar o delicioso suco de laranja, cenoura e maçã feito por Fátima. Na sala, S. Fernando ainda disse outras tantas maravilhas, entre elas : "Deus colocou as pessoas no mundo para se harmonizarem. Feliz daquele que ama seu próximo." Era exatamente isso que estávamos todos fazendo naquele momento, um verdadeiro encontro cheio de amor, respeito e harmonia. Na saída, como sempre, além dos agradecimentos mútuos, S. Fernando disse: "que Deus te abençoe, a você e a todos os seus."
E mais uma vez Solenta sentiu que realmente é muito abençoada por tudo de bom que tem na vida e pela possiblidade de conhecer pessoas como S. Fernando e sua família, que fazem tão bem ao seu coração, que a fazem acreditar que a humanidade caminha bem.
Solenta, S. Fernando e Maria

Fátima, Maria, Daniel, Cléber, S. Fernando segurando a caneca e o retrato do neto Gabriel

Esse encontro foi recheado com tantas outras histórias: das pontes de Celorico da Beira, da inteligência dos angolanos, do passado difícil de ter vivido uma guerra e muitos etcs. Infelizmente não consigo descrever tudo com a densidade que cada assunto merece e a sensação é de que fico sempre em dívida diante dessa pessoa fantástica que é S. Fernando. Deixo aqui meu muito obrigada por todo o acolhimento e carinho.

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