D. Margarida - Primeira Visita

Segunda visita do dia. A casa de D. Margarida fica no andar de cima do que parece ser o portão de um estabelecimento comercial que estava fechado. Tocamos a campainha e ninguém respondeu. Então Solenta começou a chamar bem alto (o que é sua especialidade) e Terezinha disse que nessas horas sempre pensa em ter uma buzina como a do Chacrinha. Depois de um tempo, uma voz chamou dizendo que podíamos entrar.
Dona Margarida tem 82 anos e está impossibilitada de andar em decorrência de um derrame. Mora com a filha Leninha (que é sua cuidadora e mãe de Gabriela, que estava na escola) e com o marido, que também tem problemas de saúde e nesse dia estava acamado. Na casa dos fundos mora seu outro filho com a esposa, duas filhas adolescentes e uma netinha ainda bebê.
O ENCONTRO
Quando terminaram de subir a escada foram parar na cozinha/copa e Leninha veio empurrando a cadeira de rodas trazendo D. Margarida. Junto à surpresa de estar diante de uma palhaça havia na expressão das duas algo que pareceu naquele momento indecifrável, mas que logo logo se revelaria. Leninha disse que estava levando-a para o quintal que é onde ela gosta de ver TV. Terezinha falou para Solenta que ela ia adorar o quintal. E realmente é um quintal bem interessante com mangueira, jabuticabeira e abacateiro. Terezinha pediu para desligar a TV. E, quando Solenta perguntou para D. Margarida se ela estava bem, ela desaguou. Disse que não estava bem, que queria morrer e chorou bastante. Leninha disse que a situação financeira deles estava difícil, que a mãe não entendia, que reclamava de comer só arroz e feijão todos os dias. D. Margarida tornou a repetir: "eu quero morrer." Como Solenta ainda não sabia a profundeza daquelas águas, ainda tentou brincar de fazer uma entrevista perguntando: "mas por que a senhora quer morrer?" E ela respondeu: "porque eu só fico enchendo o saco dela", apontando para a filha. Solenta se dirigiu a Leninha também, fazendo de conta que estava segurando um microfone, e perguntou: "é verdade que a sua mãe te enche o saco?" E ela respondeu: "é, ela é meio teimosa." D. Margarida repetiu que queria morrer e continuou chorando. Aí deu para se ter um pouco a dimensão da situação. Terezinha levou Leninha para o lado de dentro da casa e Solenta ficou com D. Margarida, agora sabendo que o que ela mais precisava naquele momento era chorar e desabafar. Solenta agaichou-se de frente para a cadeira de rodas, repousou as mãos sobre as pernas dela e disse que ela poderia chorar a vontade. Quando o choro foi esgotando devagarinho, Solenta foi fazendo pequenas observações de coisas ali presentes. Como era gostoso o quintal, como eram lindos os olhos azuis dela. E lá vinha choro e voz embargada e de novo Solenta ficava quietinha. Num determinado momento dessa "dança" de silêncios, soluços e pequenos gestos, D. Margarida disse que sua perna direita doía. Solenta então começou a passar a mão em sua perna e comentou como era gostoso o tecido de sua calça. Ela disse que havia acabado de trocar de roupa pois o tempo tinha repentinamente mudado e começara a esfriar. Ela colocou uma roupa mais quentinha e até um gorro de lã. Devagar, o choro foi cessando e Solenta pôde adentrar em um território bem gostoso de lembranças da infância de D. Margarida. De quando morava em Ana Dias e ia, aos domingos, de cavalo até a praia em Peruíbe. Isso se não tivesse a Santa Missa, pois não era todos os domingos que o padre ia até a cidadezinha.
E assim, quando Solenta percebeu, já estava falando bobagens. E assim, sem que D. Margarida nem se desse conta, já estava gargalhando. E que gargalhada gostosa ela tem! Contou da irmã, da sobrinha que iria fazer uma grande festa de comemoração de seus 60 anos no dia seguinte, de trabalhos, de onde conheceu o marido... E a cada comentário bobo de Solenta, lá vinha a gargalhada gostosa ou um grande sorriso aberto. Pelo quintal passaram a nora, que Solenta mal pôde ver, a neta Tamires, que conversou um pouquinho, e depois Leninha buscou Isabele, a bisnetinha de D. Margarida, para apresentar. Quando Leninha veio lá de dentro, tinha também uma expressão bem mais aliviada. Soube por Terezinha que ela também conseguiu chorar bastante. D. Margarida tem uma constituição física que transparece bastante força. Solenta a imaginou mais jovem quando ainda tinha liberdade de movimentos. Provavelmente ela devia ser daquelas pessoas que carrega um piano assoviando, dançando e achando graça. Por isso, imagina também como deve ser difícil para ela ter seus movimentos limitados e não conseguir mais fazer o que quer. A hora de ir embora estava chegando e Terezinha entregou o presente de dia das crianças para ela dar para a neta Gabriela de 10 anos. O presente era um coração de pelúcia em que, em um dos lados, estava escrito: "você é especial." Solenta e Terezinha tiraram fotos dela com o coração e mostraram para ela, aproveitaram para dizer : "a senhora é muito especial!" Solenta se despediu com abraços e beijos e foi embora muito feliz. Foi quase possível pegar com as mãos a transformação que se deu em D. Margarida do começo para o final do encontro. E é gracas a essa transformação que Solenta segue com a sensação de que seu trabalho vale a pena, que seu trabalho faz sentido.

D. Margarida e seu largo sorriso segurando o coração ao lado de Terezinha

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