A saia de Solenta ou "A roda de amor"

Cinquenta por cento da minha formação de palhaça vem de berço. Não, não há nenhum palhaço profissional na família e tampouco desenvolvo trabalhos da tradição circense, baseados em números clássicos e de habilidades corporais de toda espécie, como acrobacia, equilibrismo, malabares. O trabalho que faço está centrado na (inter) relação com as pessoas. Improviso e relação são as palavras chaves de meu trabalho. Relação com o aqui e agora, com cada ser que se dispõe ao "jogo" com essa figura de nariz vermelho. Bom, mas para não perder o fio voltemos ao berço. Sei que hoje posso fazer um trabalho que transborda afeto pois tive na minha história e tenho até hoje uma família extremamente amorosa. E no meu caso foi uma família tradicional, no sentido de ter pai, mãe, irmãos, tias, primos... Natal barulhento. Mas, entendo que o sentido de família pode ser muito mais amplo. Famílias modernas de dois pais ou duas mães, de amigos que se escolhem para estar juntos e se cuidarem, irmãos, avós, primos... Qualquer grupo de pessoas que conviva cotidianamente, tenha uma forte ligação e que consiga transmitir o sentido de vida em comunidade, com diferenças respeitadas e amor incondicional. E a saia de Solenta? Onde entra nisso tudo? Bom, pra falar disso também tenho que fazer uma pequena introdução. A primeira vez que vesti essa saia, eu já estava de nariz. Já estava Solenta. Eu a coloquei com a parte de trás (mais longa) para frente e a da frente para trás. Fiz isso não para fazer graça, mas para Solenta era natural que a saia fosse daquele jeito. Posso dizer que não tem uma vez que não me perguntam se eu já tropecei e caí com a saia daquele jeito, ou então observam que a saia está ao contrário ou indagam porque eu uso uma saia tão comprida. Foi assim que, sem querer, levei a fundo uma das características do palhaço que é seu desajuste, é assim que, à primeira vista, apesar de uma certa elegância, a roupa de Solenta causa um profundo incômodo, e uma série de outros sentimentos, nas pessoas. As respostas para as questões que me fazem são sempre variadas, a não ser o fato de que felizmente nunca caí,  e que a isso sempre respondo "até hoje não". Sempre embarco na idéia das pessoas que dizem coisas como "está ajudando o pessoal da limpeza, passando pano no chão". Mas existe uma resposta que já me vi repetindo várias vezes e acho que é muito simbólica: digo que estou recolhendo as histórias do lugar para levar comigo. É uma imagem que gosto de visualizar, concretizar o quanto cada encontro entranha em meu ser. O que acontece na sequência é que, como a saia é branca e arrasta no chão, eu não posso usá-la duas vezes sem lavá-la. Então, a cada saída de Solenta para o mundo é preciso lavá-la e passá-la e para mim esse ritual é muito importante. É como se eu estivesse me esvaziando para o próximo encontro, me esvaziando para receber o novo, o imprevsível, o outro. Acontece que em tempos de muito trabalho, uma saia não estava sendo suficiente. Além dela estar começando a desmanchar e seu tecido estar virando quase uma bandagem. E agora chegou o momento de juntar tudo, a saia, o berço e a roda de amor. Comecei a buscar aqui em São Paulo um tecido para fazer outra saia igual e não encontrei nada parecido, os vendedores eram unânimes: "esse tecido não existe mais". Achei isso um pouco dramático demais, afinal era só um tecido branco, de algodão. "Será que o algodão estaria em extinção?" Num final de semana, fui para minha cidade natal, Marília, com a saia em punho, disposta a resolver essa questão por lá. Afinal, com uma mãe e uma tia que costuram, eu poderia pedir ajuda. E foi assim que minha tia tirou o molde e minha mãe ficou encarregada de procurar um tecido que se assemelhasse ao da saia. Voltei para São Paulo trazendo a saia original de volta, afinal não poderia ficar sem ela. No meu retorno a Marília fico sabendo de toda a história para que a saia fosse feita. Minha mãe andou pela cidade toda atrás do tecido sem sucesso. Quando já havia quase desistido, achou em uma das lojas uma banca de retalhos e tcham... puxou de lá um retalho que seria perfeito para fazer a saia, a não ser o fato de que ele media somente a metade do que seria necessário. Mas uma mãe obstinada não desiste jamais e eis que tcham... a outra metade também estava lá. Duas metades com a medida exata necessária. E o melhor, por um preço que mais parecia uma piada.  O sabor com que ela me contou essa história não consigo reproduzir aqui nessas minhas pobres palavras. Seus olhos brilhavam e ela fazia os gestos de puxar o tecido da banca. O próximo passo seria reproduzir a saia e isso ficou ao encargo de minha tia Lu que já havia tirado o molde. Fazer a saia para ela foi moleza, o problema foi que a saia possui uma parte de renda que eu também não havia levado e dessa vez lá vai minha tia atrás de uma renda que se parecesse com a original. Também ela rodou a cidade atrás do material. E igualmente, como minha mãe, quando já estava por desistir, encontrou uma linda renda, que só não digo ter a medida exata necessária pois ela disse ter sobrado 10 cm. A saia ficou linda e, toda vez que a coloco, faço minhas reverências de agradecimento a essas mulheres tão dedicadas, empenhadas e amorosas. Essa postagem nada mais é do que uma declaração de profunda gratidão a minha mãe Mirian e a minha Tia Lu, integrantes vitalícias dessa roda de amor em minha vida.

Nota: Escrevendo esse texto me lembrei de outro fato amoroso ligado a história dessa saia. Há alguns anos atrás, quando eu ainda não usava a saia com tanta frequência, um dia, Amélia, que é a queridíssima cuidadora de minha casa, uma vez por semana (toda quarta há 17 anos), levou para costurar, na saia, aquilo que ela considerou um rasgo. Realmente era um rasgo, mas para Solenta era parte de seu ritual, de seu corpo. A saia não tinha elástico e como ela era rasgada Solenta a amarrava na cintura. Pensando bem era por esse motivo que a parte mais longa para frente lhe parecia mais natural. Amélia quis fazer uma surpresa, um gesto de carinho e amor. Foi uma das situações mais difíceis da minha vida. Pois quando ela trouxe a saia que havia pego escondido, costurada em seu "rasgo" e com elástico na cintura e me fez essa entrega tão delicada eu não pude disfarçar meu profundo desespero, pavor, tristeza, revolta ante aquilo que mais parecia uma profanação. Ainda bem que não sou uma pessoa explosiva, não gritei, não esbravejei, nem disse impropérios, mas Amélia pôde sentir, pela minha expressão, minha imensa frustração. Lágrimas correram por minha face e fiquei sem lugar. Acho que demorou para eu conseguir explicar para ela o que aquilo significava. E mais, me senti extremamente culpada por não conseguir agradecer um gesto de carinho tão grande. Hoje o elástico faz parte do ritual como um dia fez a amarração.

Comentários

  1. Minha querida,

    Se é a este post que vc gostaria que eu lesse para "aprovar" sua "divulgação", saiba que ele está mais do que aprovado!
    Risos e lágrimas se misturavam ao final da leitura.
    Vc consegue sim, colocar em palavras sentimentos profundos e lindos.
    Tenho certeza de que a mamãe e a tia Lú vão adorar ler.
    A Amélia tb, pois este gesto de carinho que ela quis demostrar com certeza já era o retorno de algum outro gesto carinhoso seu...

    beijinho,
    Taty

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